quinta-feira, 1 de setembro de 2016

multidão


foi do céu até o fundo do mar. trocou água por cachaça no fundo do bar


“acho que sei o que fazer” – disse ela na mesa daquele bar que ela ia toda semana que, por coincidência, era barato

ia ser uma noite longa

vamos voltar um pouco

a vida dela era um gráfico decrescente e a linha estava muito próxima do eixo X. nunca foi muito dedicada na escola, mas não era nenhum motivo de preocupação. “você é muito inteligente” – todos diziam. “sou o futuro mais promissor e o mais incerto também” – ela fazia questão de alertar

mantinha algumas amizades, um círculo relativamente estável. perdia contato com alguma pessoa e conhecia outra. como todo mundo, seus interesses foram variando ao longo da vida. antes gostava de rock, já amou eletrônica, agora dança pop

“querem saber?” – tomou um gole daquela cerveja que, por coincidência, era a mais barata

depois de uma infância um pouco tranquila. ela entrou em uma fase bastante raivosa. era um sentimento que saia de dentro quase rasgando a pele, mas que parecia nunca afetar de maneira duradoura a vida dela. adolescência. as besteiras que as pessoas fazem sempre são justificadas quando rotuladas

as pessoas que estavam com ela na mesa respondiam coisas gerais, aquelas frases que funcionam para qualquer situação. você não precisa realmente entender o que estão te dizendo. a entonação de quem ta falando já sinaliza a resposta com a qual você deve responder para parecer interessado e manter a outra pessoa falando

quando você percebe entusiasmo, responde com “foda!”
quando você percebe tristeza, escolhe entre responder condescendentemente com “foda…”, ou então mostra compaixão com “foda mesmo...”
quando a história parecer um relato de algo grandioso e engraçado, ri. ri alto, mas sem demorar muito “haha foda!”. só demora se a história for mais engraçada do que grandiosa “hahahahahahaha foda”

segue a noite

ela percebeu a falta de interesse das pessoas com quem estava. frequentemente percebia isso nas pessoas. normalmente nela mesmo

ela ia contar que ia se mudar e sobre um projeto que queria fazer. ela tinha 23 anos e tinha acabado de terminar a universidade. algo dentro dela queria voar para o mais longe possível

alguém na mesa começou a rir bastante. as outras pessoas olharam, na expectativa de uma explicação para a risada. era algum vídeo, alguma coisa que foi vista em uma dessas redes sociais. todos da mesa foram marcados na publicação para que pudessem rir juntos
de repente, todos os seus projetos, seus escritos, suas falas voltaram ao pó

não era a primeira nem a quinquagésima terceira vez que a interrompiam, e nem seria a ultima. é difícil seguir o protocolo quando a mensagem tem muitas frases ou precisa de atenção verdadeira do receptor

é mais fácil sugerir outro assunto, algo mais efêmero

140 caracteres, por exemplo

“querem saber?” pensou ela


“deixa quieto”