foi do céu até o fundo do mar. trocou água por cachaça no fundo do bar
“acho que sei o que fazer” – disse ela na mesa
daquele bar que ela ia toda semana que, por coincidência, era barato
ia ser uma noite longa
vamos voltar um pouco
a vida dela era um gráfico decrescente e a linha
estava muito próxima do eixo X. nunca foi muito dedicada na escola, mas não era
nenhum motivo de preocupação. “você é muito inteligente” – todos diziam. “sou o
futuro mais promissor e o mais incerto também” – ela fazia questão de alertar
mantinha algumas amizades, um círculo relativamente
estável. perdia contato com alguma pessoa e conhecia outra. como todo mundo, seus
interesses foram variando ao longo da vida. antes gostava de rock, já amou
eletrônica, agora dança pop
“querem saber?” – tomou um gole daquela cerveja que,
por coincidência, era a mais barata
depois de uma infância um pouco tranquila. ela entrou
em uma fase bastante raivosa. era um sentimento que saia de dentro quase
rasgando a pele, mas que parecia nunca afetar de maneira duradoura a vida dela.
adolescência. as besteiras que as pessoas fazem sempre são justificadas quando
rotuladas
as pessoas que estavam com ela na mesa respondiam
coisas gerais, aquelas frases que funcionam para qualquer situação. você não
precisa realmente entender o que estão te dizendo. a entonação de quem ta falando já
sinaliza a resposta com a qual você deve responder para parecer interessado e
manter a outra pessoa falando
quando você percebe entusiasmo, responde com “foda!”
quando você percebe tristeza, escolhe entre responder
condescendentemente com “foda…”, ou então mostra compaixão com “foda mesmo...”
quando a história parecer um relato de algo grandioso
e engraçado, ri. ri alto, mas sem demorar muito “haha foda!”. só demora se a
história for mais engraçada do que grandiosa “hahahahahahaha foda”
segue a noite
ela percebeu a falta de interesse das pessoas com
quem estava. frequentemente percebia isso nas pessoas. normalmente nela mesmo
ela ia contar que ia se mudar e sobre um projeto que
queria fazer. ela tinha 23 anos e tinha acabado de terminar a universidade.
algo dentro dela queria voar para o mais longe possível
alguém na mesa começou a rir bastante. as outras
pessoas olharam, na expectativa de uma explicação para a risada. era algum
vídeo, alguma coisa que foi vista em uma dessas redes sociais. todos da mesa
foram marcados na publicação para que pudessem rir juntos
de repente, todos os seus projetos, seus escritos,
suas falas voltaram ao pó
não era a primeira nem a quinquagésima terceira vez
que a interrompiam, e nem seria a ultima. é difícil seguir o protocolo quando a
mensagem tem muitas frases ou precisa de atenção verdadeira do receptor
é mais fácil sugerir outro assunto, algo mais efêmero
140 caracteres, por exemplo
“querem saber?” pensou ela
“deixa quieto”